A Constituição Federal de 1988, no intuito de materializar os princípios da dignidade da pessoa humana, da cidadania e da igualdade, prevê que o acesso a cargo público, mediante concurso, será diferenciado às pessoas com deficiência, conforme se retira do artigo 37, inciso II c/c VIII:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;

VIII – a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão;

Observa-se que o legislador constituinte instituiu norma de eficácia limitada ao prever o inciso VIII do artigo 37, relegando à legislação infraconstitucional a regulamentação do mandamento ali instituído.

Assim, a Lei n. 7.853/1989 veio inaugurar a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, visando “garantir às pessoas portadoras de deficiência as ações governamentais necessárias ao seu cumprimento e das demais disposições constitucionais e legais que lhes concernem, afastadas as discriminações e os preconceitos de qualquer espécie, e entendida a matéria como obrigação nacional a cargo do Poder Público e da sociedade”, e declarando que “serão considerados os valores básicos da igualdade de tratamento e oportunidade, da justiça social, do respeito à dignidade da pessoa humana, do bem-estar, e outros, indicados na Constituição ou justificados pelos princípios gerais de direito” na interpretação e aplicação das leis.

A referida Lei, no entanto, não deu integral cumprimento ao inciso VIII do artigo 37 da Carta Primavera, porque não previu o percentual mínimo de vagas reservadas. Foi necessária a edição da Lei n. 8.112/1990, para regulamentar o dever de a administração pública reservar até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas em concurso às pessoas com deficiência:

Art. 5º São requisitos básicos para investidura em cargo público:

[…]

§ 2º Às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; para tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso.

Mesmo com a edição das duas leis ordinárias após a Constituição Federal de 1988, estas não foram suficientes para regulamentar a eficácia e o pleno exercício do direito ao acesso à vaga especial pelas pessoas com deficiência, e foi somente em 1999 que o Governo editou decreto regulamentador sobre a matéria, que também consolidou normas de proteção.

Com efeito, o Decreto n. 3.298/1999 “Regulamenta a Lei n. 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras providências”. Referido diploma legal prevê, dentre outras coisas, os conceitos sobre deficiência e quais pessoas seriam assim consideradas portadoras de deficiência, o direito à inscrição em concurso público em igualdade de condições, a reserva de 5% (cinco por cento) no mínimo em face da classificação obtida, dentre outras questões normativas. Nos termos do seu artigo 3º:

Art. 3º Para os efeitos deste Decreto, considera-se:

I – deficiência – toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano;

II – deficiência permanente – aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter probabilidade de que se altere, apesar de novos tratamentos; e

III – incapacidade – uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração social, com necessidade de equipamentos, adaptações, meios ou recursos especiais para que a pessoa portadora de deficiência possa receber ou transmitir informações necessárias ao seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida.

A redação original do artigo 4º do Decreto n. 3.298/1999 trazia as categorias do que se considerava uma pessoa portadora de deficiência:

Art. 4º É considerada pessoa portadora de deficiência a que se enquadra nas seguintes categorias:

I – deficiência física – alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções;

II – deficiência auditiva – perda parcial ou total das possibilidades auditivas sonoras, variando de graus e níveis na forma seguinte:

de 25 a 40 decibéis (db) – surdez leve;

de 41 a 55 db – surdez moderada;

de 56 a 70 db – surdez acentuada;

de 71 a 90 db – surdez severa;

acima de 91 db – surdez profunda; e

anacusia;

III – deficiência visual – acuidade visual igual ou menor que 20/200 no melhor olho, após a melhor correção, ou campo visual inferior a 20º (tabela de Snellen), ou ocorrência simultânea de ambas as situações;

IV – deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:

comunicação;

cuidado pessoal;

habilidades sociais;

utilização da comunidade;

saúde e segurança;

habilidades acadêmicas;

lazer; e

trabalho;

V – deficiência múltipla – associação de duas ou mais deficiências.

O citado artigo, todavia, foi alterado pelo Decreto n. 5.296/2004, o qual fez profunda mudança no que diz respeito à categoria da deficiência auditiva, passando a conceituar esta como “perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz”, ao passo que a redação anterior, como visto acima, considerava a perda parcial ou total das possibilidades auditivas sonoras, variando de graus e níveis”.

Ou seja, para fins de se caracterizar a surdez como deficiência na vigência da redação original do artigo 4º, bastava estar enquadrado nos níveis ou se tratar de anacusia, que não restringiu a anacusia bilateral, de sorte que a surdez unilateral total também era considerada uma deficiência auditiva.

Em outras palavras, pode-se argumentar que houve retrocesso social, porque se em 1999 a surdez unilateral total era considerada uma deficiência, a partir de 2004 deixou de ser assim considerada, restringindo o alcance da proteção apenas à perda bilateral que atingir 41db ou mais nas frequências lá previstas.

A razão de ser da alteração, como se dessume dos defensores da alteração, repousa no fato de que a surdez unilateral total não causaria um impedimento, dificuldade, barreira no desenvolvimento social, profissional ou acadêmico do portador da surdez, para concorrer em igualdade de condições com quem possui audição dentro dos limites considerados normais, de sorte que não haveria justificativa à reserva de vaga especial em concurso público.

Esse entendimento foi pacificado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça com a edição da Súmula n. 552:

O portador de surdez unilateral não se qualifica como pessoa com deficiência para o fim de disputar as vagas reservadas em concursos públicos.

Muitos foram os precedentes nesse sentido: Precedentes: MS 18.966-DF (CE, 02.10.2013 – DJe 20.03.2014) – acórdão publicado na íntegra REsp 1.307.814-AL (1ª S, 11.02.2014 – DJe 31.03.2014) RMS 36.081-PE (1ª S, 28.05.2014 – DJe 23.09.2014) AgRg no REsp 1.374.669-RJ (1ª T, 08.05.2014 – DJe 19.05.2014) AgRg no REsp 1.379.284-SE (1ª T, 18.11.2014 – DJe 26.11.2014) AgRg no AgRg no REsp 1.390.124-RS (2ª T, 25.03.2014 – DJe 31.03.2014) AgRg no AgRg no AREsp 364.588-PE (2ª T, 03.04.2014 – DJe 14.04.2014) AgRg no AREsp 510.378-PE (2ª T, 05.08.2014 – DJe 13.08.2014) AgRg no RMS 43.230-SP (2ª T, 23.10.2014 – DJe 27.11.2014).

Todavia, ousa-se divergir do entendimento da Corte Superior. A desconsideração da surdez unilateral total como deficiência não encontra mais respaldo tanto no ordenamento jurídico mais moderno, quanto na ciência sobre os impactos desta deficiência na vida da pessoa e sua família, os diversos entraves e dificuldades que enfrenta, acabando por não lhe garantir igualdade de condições, merecendo a proteção legal.

Primeiramente, não se justifica mais excluir o candidato da vaga especial por um critério meramente objetivo, ou seja, que a surdez unilateral total por si só não se enquadraria como deficiência. Para se considerar ou não uma pessoa portadora de deficiência, deve ser realizado uma avaliação com equipe multidisciplinar e interdisciplinar, que gerará a emissão de um parecer específico, consoante preveem os artigo 5º e 6º da Lei n. 9.508/2018 (que revogou o artigo 43 do Decreto n. 3.298/1999):

Art. 5º O órgão ou a entidade da administração pública federal responsável pela realização do concurso público ou do processo seletivo de que trata a Lei nº 8.745, de 1993, terá a assistência de equipe multiprofissional composta por três profissionais capacitados e atuantes nas áreas das deficiências que o candidato possuir, dentre os quais um deverá ser médico, e três profissionais da carreira a que concorrerá o candidato.

Parágrafo único. A equipe multiprofissional emitirá parecer que observará:

I – as informações prestadas pelo candidato no ato da inscrição no concurso público ou no processo seletivo;

II – a natureza das atribuições e das tarefas essenciais do cargo, do emprego ou da função a desempenhar;

III – a viabilidade das condições de acessibilidade e as adequações do ambiente de trabalho na execução das tarefas;

IV – a possibilidade de uso, pelo candidato, de equipamentos ou de outros meios que utilize de forma habitual; e

V – o resultado da avaliação com base no disposto no § 1º do art. 2º da Lei nº 13.146, de 2015, sem prejuízo da adoção de critérios adicionais previstos em edital.

Art. 6º As entidades contratadas para a realização de concurso público ou de processo seletivo de que trata a Lei nº 8.745, de 1993, em qualquer modalidade, ficam obrigadas a observar o disposto neste Decreto no momento da elaboração e da execução do edital.

Como se vê, o resultado da avaliação multiprofissional e interdisciplinar deve ser emitido via parecer específico, nos termos do artigo 2º, § 1º, da Lei n. 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), com vigência a partir de 2018, consoante artigos 124 e 125 do referido Diploma Legal:

Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

§ 1º A avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará:

I – os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo;

II – os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais;

III – a limitação no desempenho de atividades; e

IV – a restrição de participação.

Portanto, o exame da deficiência, para fins de concurso público, deve ter sido realizado por equipe multidisciplinar e interdisciplinar, e deve avaliar, sob o aspecto biopsicossional, quais os impedimentos nas funções e estruturas do corpo, os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais, a limitação no desempenho de atividades e a restrição de participação do postulante à vaga reservada no concurso, com a emissão de parecer ao final dos exames.

Evidentemente, se não for realizado o exame na forma prevista em Lei haverá violação ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório, assim também ao princípio da legalidade.

Isso porque, a administração pública está vinculada ao princípio da legalidade, da moralidade, da impessoalidade, da eficiência, e sempre deve oferecer ao administrado a possibilidade mais benéfica prevista em lei, nos termos do artigo 37 da Constituição Federal de 1988, observando, ainda, a reserva de vagas em concurso para pessoas com deficiência.

Assim, partindo da premissa de que “o ser humano não pode ser subordinado ao tratamento reservado aos objetos” (Marçal Justen Filho, Curso de Direito Administrativo, p. 179), a administração pública deve assegurar a realização da avaliação na forma do Estatuto da Pessoa com Deficiência, sob pena de violar dever de boa-fé objetiva e para o ônus de garantir segurança jurídica ao administrado, tratando-o como uma mera coisa despida de sentimentos, interesses, aspirações, desejos e, sobretudo, direitos.

Salienta-se que a Súmula n. 552 do colendo Superior Tribunal de Justiça não ampara o entendimento de exclusão automática simplesmente por se constatar surdez unilateral total. Primeiro, porque a súmula está ultrapassada em virtude das legislações e estudos científicos supervenientes sobre a deficiência ora em discussão (surdez unilateral total). Segundo, há que ser feita uma avaliação psicossocial, nos termos do artigo 2º, § 1º, do Estatuto da Pessoa com Deficiência, legislação com vigência posterior ao enunciado sumular e que alterou o decreto de referência da súmula.

Registre-se, ainda, a existência de leis estaduais (Paraíba, Rio de Janeiro, São Paulo) que qualificam a surdez unilateral total como deficiência para fins de concorrências especiais.

Além disso, o plenário do Senado aprovou, em agosto de 2018, a proposta que considera pessoas com deficiência os portadores de perda auditiva em apenas um dos ouvidos (unilateral); o projeto de lei (PLC 23/2016), oriundo da Câmara, retornou por conta de dois ajustes propostos. Ou seja: os representantes do povo são favoráveis à proteção de situações de surdez unilateral total, a demonstrar que o texto da Súmula 552 do Superior Tribunal de Justiça está em dissonância com a atual realidade social.

Com efeito, a surdez unilateral total, desde a infância, impõe dificuldades de aprendizagem e comunicação, assim também uma alteração na dinâmica familiar. Há a necessidade de atenção especial: nas salas de aulas, sempre precisa sentar em lugar especial, com o ouvido bom virado em direção ao professor, sentado à frente, o que rende apelidos e segregações, dificultando o pleno desenvolvimento psicossocial. Esforça-se o dobro para poder compreender a fala e, assim, dedica-se mais aos estudos do que os ouvintes, subtraindo tempo de convívio social. Na concorrência à vagas de trabalho, já na vida de jovem adulto, diversas são as oportunidades em que a pessoa com surdez unilateral total é preterida em virtude de possuir a deficiência, já que necessita declarar sua condição nas entrevistas e fichas de emprego, podendo ter desempenho abaixo em entrevistas e dinâmicas de grupo. Geralmente, são dispensados do serviço militar também em razão da sua condição de deficiente. A surdez unilateral também impede de concorrer a vagas em certos serviços públicos, como carreiras policias, forças armadas, dentre outras, porque é considerada inaptidão. Todas essas limitações são identificadas em estudos científicos sobre surdez unilateral.

Segundo o artigo científico “Surdez e Diagnóstico: narrativa de surdos adultos”, de autoria de Rosa Monteiro, Daniele Nunes Henrique Silva, da Universidade de Brasília, e Carl Ratner, do Institute for Cultural Research and Education:

A surdez é caracterizada como a redução ou ausência da capacidade de ouvir determinados sons e pode ser classificada em dois tipos: perda auditiva condutiva, que se dá geralmente por obstruções da orelha externa como, tampões de cera, infecções no canal do ouvido, tímpano com rotura ou perfurado; e PERDA AUDITIVA NEUROSSENSORIAL, que compreende danos nas células ciliadas da cóclea. Sobre as causas, esta pode ser congênita, causada por rubéola gestacional, medicamento tomados pela gestante, hereditariedade e complicações no parto como a anóxia (fornecimento insuficiente de oxigênio), ou pode ser adquirida por consequência de otites de repetição na infância, mau uso de antibióticos e até viroses.

A surdez não impõe barreiras práticas na vida diária. As pessoas surdas podem se mover livremente, já que não há impedimento para suas capacidades físicas (Setai, 2014). AS DIFICULDADES QUE AS PESSOAS SURDAS VIVENCIAM DIZEM RESPEITO À INCAPACIDADE DE OUVIR E, PORTANTO, DE SE COMUNICAR COM A SOCIEDADE QUE OUVE, POIS ELES NÃO COMPARTILHAM O MESMO CANAL DE COMUNICAÇÃO. ESTA SITUAÇÃO IMPEDE A INTEGRAÇÃO TOTAL DAS PESSOAS SURDAS EM SUAS FAMÍLIAS (se tratando de pais ouvintes não sinalizadores), E NA SOCIEDADE, JÁ QUE OS RELACIONAMENTOS SOCIAIS SÃO ESTABELECIDOS PRIMARIAMENTE POR SONS.

É importante observar que a surdez não é percebida visualmente, o que torna seu diagnóstico difícil em um primeiro momento, MANIFESTANDO-SE COMO UMA DEFICIÊNCIA INVISÍVEL. ESSA INVISIBILIDADE AFETA O RELACIONAMENTO ENTRE PAIS E FILHOS, GERANDO DRÁSTICAS CONSEQUÊNCIAS PARA A VIDA DAS PESSOAS SURDAS, conforme mostraremos neste artigo que pretende discutir o que narram os surdos sobre a descoberta da surdez. A partir da análise das narrativas dos sujeitos investigados, identificamos dois aspectos interdependentes que se desdobram da questão maior:

A descoberta do diagnóstico de surdez – o efeito iatrogênico; e,

A reconfiguração das relações parentais após o diagnóstico da surdez – a dimensão dramática da psique.

(MONTEIRO, Rosa; SILVA, Daniele Nunes Henrique; RATNER, Carl. Surdez e Diagnóstico: narrativas de surdos adultos. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília , v. 32, n. spe, e32ne210, 2016 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722016000500210&lng=pt&nr…. Acessos em 22 nov. 2019. Epub 23-Mar-2017. http://dx.doi.org/10.1590/0102-3772e32ne210, g.n).

No estudo científico realizado no Centro Audição na Criança, DERDIC, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – CeAC/DERDIC/PUC, os pesquisadores Altair Cadrobbi Pupo, Giovana Targino Esturaro, Luisa Barzaghi e Maria Cecília Bonini Trenche registram que a literatura médica reconhece a ocorrência de déficits no processo de desenvolvimento da linguagem e da comunicação:

Na PAUn [refere-se à perda de audição unilateral], o indivíduo apresenta uma orelha com função normal e outra com alteração auditiva de qualquer grau, tipo e configuração, que pode ser condutiva, mista, sensorioneural, incluindo o transtorno do espectro da neuropatia auditiva.

[…]

De acordo com a literatura, a PAUn pode ocasionar déficits no processamento auditivo e, consequentemente, no desenvolvimento da linguagem e da comunicação. ESSES DEFICITS PODEM ESTAR RELACIONADOS ÀS DESVANTAGENS QUE AS CRIANÇAS EXPERIMENTAM PELA FALTA DA AUDIÇÃO BINAURAL (4). Na presença de ruído ambiental, CRIANÇAS COM PAUN ENCONTRAM MAIORES DIFICULDADES PARA COMPREENDER A FALA do que aquelas com audição normal bilateralmente, mesmo quando a orelha melhor está posicionada em direção à fala. Além disso, A DIFICULDADE NA LOCALIZAÇÃO ESPACIAL DA FONTE SONORA E NA COMPREENSÃO DA FALA À DISTÂNCIA PODE INTERFERIR NO DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM (5). Nesse sentindo, A PAUN PODE SER UM FATOR DE RISCO PARA O DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM E ACADÊMICO da criança, pois esta PODE APRESENTAR DIFICULDADES NAS SITUAÇÕES DE COMUNICAÇÃO E DE AUDIÇÃO NO DIA A DIA(6). Pesquisas demonstram que 1/3 de crianças com PERDAS UNILATERAIS PERMANENTES APRESENTAM ATRASOS DE LINGUAGEM E ACADÊMICOS (7,8,9). Estudo realizado no Colorado Home Intervention Program (10) observou que, aproximadamente 33% tinham DESENVOLVIMENTO DE LINGUAGEM ABAIXO DO ESPERADO PARA A FAIXA ETÁRIA. OS AUTORES CONCLUÍRAM QUE CRIANÇAS COM PAUN TÊM MAIOR RISCO PARA DIFICULDADES SOCIOEMOCIONAIS DO QUE CRIANÇAS COM AUDIÇÃO NORMAL. Ao avaliar as habilidades linguísticas de crianças com PAUn, outro estudo (11) observou que as crianças apresentaram resultados nos testes de avaliação da COMUNICAÇÃO ORAL SIGNIFICATIVAMENTE ABAIXO DOS RESULTADOS OBTIDOS EM CRIANÇAS OUVINTES. Para o Joint Comittee of Impaired Children (12), TODA CRIANÇA QUE FOR DIAGNOSTICADA COM QUALQUER TIPO DE PERDA AUDITIVA, INCLUINDO PERDAS LEVES E UNILATERAIS, DEVE RECEBER ACOMPANHAMENTO PERIÓDICO, UMA VEZ QUE PODE APRESENTAR DISTÚRBIOS OU ATRASOS NA LINGUAGEM. Com o objetivo de conhecer as necessidades dessa população em nossa realidade, foi iniciada em 2009, uma pesquisa para investigar o impacto da PAUn sobre o desenvolvimento das crianças diagnosticadas no serviço de saúde. OS RESULTADOS PARCIAIS REVELARAM QUE, APROXIMADAMENTE, 30% DESSAS CRIANÇAS APRESENTARAM ALTERAÇÕES NA LINGUAGEM ORAL, ESPECIALMENTE DIFICULDADES NA PRODUÇÃO DOS SONS DA FALA(13). Frente à escassez de estudos sobre essa questão, esta pesquisa teve por objetivo analisar o desempenho fonológico e a competência lexical de crianças com PAUn sensorioneurais e condutivas por malformação congênita de orelha média/e ou externa (PUPO, Altair Cadrobbi et al. Perda auditiva unilateral em crianças: avaliação fonológica e do vocabulário. Audiol., Commun. Res., São Paulo, v. 21, e1695, 2016. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2317-64312016000100324&lng=pt&nr…. Acessos em 22 nov. 2019. Epub 03-Out-2016. http://dx.doi.org/10.1590/2317-6431-2016-1695, g.n.).

Em artigo escrito para o Journal of Human Growth and Development, os pesquisadores inauguram o ensaio declarando que “A audição é a principal fonte para aquisição de habilidades de linguagem e fala em indivíduos normais. O ouvido é o único órgão sensorial com representação nos dois hemisférios cerebrais, de forma que o sistema auditivo possui vias ipsi e contralaterais” e que “Os problemas auditivos experenciados por indivíduos portadores de perda auditiva unilateral podem ser explicados, em parte, pelo fenômeno da audição binaural, o qual inclui a somação binaural, a localização da fonte sonora e a mudança de limiar determinada por meio de mascaramento” (In: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v22n1/pt_12.pdf. Acesso 22 nov. 2019).

Ou seja, é evidente que o indivíduo com surdez, ainda que unilateral total, não concorre em igualdade de condições com os demais ouvintes, pois desde a infância sofrem uma mudança na dinâmica familiar, assim também uma maior dificuldade no desenvolvimento da linguagem e da comunicação, habilidades sociais essenciais.

É inegável que uma boa comunicação, notadamente no mundo globalizado atual, é importante ferramenta de inserção, crescimento e desenvolvimentos social, profissional e acadêmico dos indivíduos, de maneira que a surdez é causa de impedimento de longo prazo de natureza física, intelectual e sensorial, a qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir a participação plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas, nos exatos termos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas Com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007, que assim dispõe:

ARTIGO 1 – PROPÓSITO

O propósito da presente Convenção é o de promover, proteger e assegurar o desfrute pleno e eqüitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por parte de todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua inerente dignidade.

Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas.

O Congresso Nacional aprovou, por meio do Decreto Legislativo n. 186/2008, conforme o procedimento previsto no § 3º do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, a citada Convenção, e, considerando que o governo depositou o instrumento de ratificação dos referidos atos junto ao Secretário-Geral das Nações Unidas em 1º de agosto de 2008, os atos internacionais em apreço entraram em vigor para o Brasil, no plano jurídico externo, em 31 de agosto de 2008. Com a promulgação da referida Convenção por meio do Decreto n. 6.949/2009, passou a ter eficácia no plano jurídico interno.

Em 2015, foi instituído o Estatuto da Pessoa com Deficiência, afirmando que esta lei tem por base a citada Convenção, e é “[…] destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania”.

Nos termos do artigo 2º do referido Estatuto, “Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.

Logo, o ordenamento jurídico brasileiro possui legislação desde 2009, quando da promulgação da Convenção, que é de 2007, declarando que pessoa com deficiência é aquela que possui uma limitação, impedimento, dificuldade de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, e em conjunto com outras variáveis, pode obstruir, dificultar, impedir a plena e efetiva participação na sociedade em igualdada de condições com as demais pessoas.

Ora, o Decreto n. 3.298/1999 está em total descompasso com a legislação especial posterior, de hierarquia superior, e o conceito de deficiência previsto no artigo 4º, inciso II, é claramente contrário ao Estatuto e a Convenção da Pessoa com Deficiência, quando considera que a:

Art. 4º […]

II – deficiência auditiva [é a] – perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz; (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004).

A limitação prevista no inciso II acima é manifestamente contrária ao Estatuto e à Convenção acima citados, impõe limites objetivos sem qualquer avaliação psicossocial específica, sem permitir que a pessoa com surdez unilateral total possa demonstrar a sua condição de deficiente e ter tratamento protetivo, que lhe garanta a efetiva e plena participação na sociedade em igualdade de condições, em respeito aos direitos fundamentais à dignidade da pessoa humana, à cidadania e à igualdade.

E como visto, o Decreto n. 5.296/2004 não está apenas em dissonância com a legislação mais moderna vigente no país, mas também em contrariedade à própria ciência.

Não à toa, o CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA – CONADE, quando provocado a se manifestar sobre o Projeto de Lei da Câmara – PLC – n. 23/20016, que declara expressamente ser a surdez unilateral uma deficiência para todos os efeitos de proteção legislativa, resolveu adotar postura favorável à aprovação do texto do citado PLC, conforme se retira da ATA DA 109ª REUNIÃO ORDINÁRIA CONADE (documento anexo).

Lê-se importantes ponderações feitas pelos Conselheiros do CONADE, no sentido de que “É importante ressaltar que há zumbidos, tonteira ou perda de equilíbrio decorrentes da perda auditiva unilateral, esses casos devem ser analisados cautelosamente uma vez que pode acarretar dificuldade de concentração e de aprendizagem que podem ser consideradas barreiras e impede a sua plena participação na sociedade em igualdade de condições com outras pessoas”, que “Dificuldade da deficiência auditiva unilateral: outros problemas e dificuldades das pessoas com deficiência auditiva unilateral já estão descritos na classificação internacional da funcionalidade incapacidade e saúde CIF 2004 e verificados em muitos estudos científicos” (in: ATA DA 109ª REUNIÃO ORDINÁRIA CONADE).

Constou, também, que “Estudos científicos comprovam as dificuldades e barreiras inerentes a perda auditiva unilateral tais como: limitações da comunicação, maior propensão de apresentar patologias psicossomáticas, dificuldade no desenvolvimento acadêmico, atraso na evolução da fala e da linguagem, menor funcionalidade nas habilidades auditivas, dificuldade de localização, fechamento, resolução e ordenação atemporal, desculpa, resolução e ordenação temporal, dificuldade reconhecimento de fala na presença de ruídos ambiental, dificuldade de comunicação em grupo, dificuldade de localização espacial das fontes sonoras, constrangimento e dificuldade nas interações sociais, maior propensão de apresentar doenças psicológicas, menor índice de escolaridade em comparação a população não deficiente, renda mais baixos comparada a população não deficiente. – Dificuldade no trabalho versus discriminação: Uma das uma das maiores dificuldades das pessoas com perda de audição unilateral total, é ser inserido no mercado de trabalho por dois motivos, o primeiro motivo é que empresas têm receio de admitir essas pessoas por medo de sofrer processos judiciais no caso de piora de audição deles ou por ter uma baixa, por ter uma possível baixa de produtividade, dessa forma ficam reprovados em exames admissionais ou dispensados, mesmo sendo aptos ao trabalho de um determinado cargo ou função, o outro motivo é que em algumas atividades laborais são exigidas do empregado maior atenção, cuidados, e acuidade auditiva, a deficiência auditiva unilateral reduz a capacidade auditiva da pessoa, o que se torna uma barreira para o desempenho dessas atividades profissionais, nas profissões “proibidas” as pessoas com perda auditiva unilateral não é possível que sejam exercidas sem expor a riscos a integridade física e à vida do empregado com a perda auditiva ou de outras pessoas, além de outras formas de discriminação sofrida pela condição: pessoa com deficiência auditiva unilateral total” (in: ATA DA 109ª REUNIÃO ORDINÁRIA CONADE).

Em outro aspecto biopsicossocial relevante a ser observado nas pessoas que acometidas de surdez unilateral total, registrou-se que “As pessoas com perda auditiva unilateral total estão sofrendo com o limbo jurídico e trabalhista, pois na iniciativa privada são considerados como pessoas com deficiência e não podem preencher alguns cargos ou funções, mas como pela legislação, não são consideradas pessoas com deficiências, não podem preencher alguma das vagas das cotas. Na esfera pública não podem concorrer na Ampla concorrência para cargos como policiais, escrivães, bombeiros, agente penitenciários, entre outros, pela falta de uma da audição e também não podem concorrer como deficiente, porque a legislação não os ampara portanto, para serem excluídos são pessoas com deficiência, mas para inclui-los não é permitido, pois a legislação não os ampara, devemos considerar ainda que as políticas públicas devem amparar todas as pessoas com deficiências sem distinção seja ela com deficiência leve, moderada ou grave” (in: ATA DA 109ª REUNIÃO ORDINÁRIA CONADE).

Com a proposta de alteração no texto-base do PLC 26/2016, foi reeditado para reconhecer apenas a SURDEZ UNILATERAL TOTAL como deficiência, e não a UNILATERAL PARCIAL (exceto quando bilateral), o CONADE se posicionou favorável ao referido PLC.

O PLC passou pelas Comissões competentes e, por último em 10/05/2019, em foi aprovado o texto pela Comissão de Constituição e Justiça – CCJ, conforme Relatório anexo, que adota a seguinte redação:

Art. 1º A deficiência auditiva é a limitação de longo prazo da audição, unilateral total ou bilateral parcial ou total, a qual, em interação com uma ou mais barreiras, obstrui a participação plena e efetiva da pessoa na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas.

Retira-se do site da Câmara dos Deputados o andamento do referido PLC:

Data

Andamento

05/12/2018

Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência ( CPD ) – 13:00 Reunião Deliberativa Ordinária

Aprovado o Parecer, apresentou voto em separado o Deputado Lobbe Neto. Inteiro teor

10/12/2018

Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania ( CCJC )

Recebimento pela CCJC.

12/12/2018

COORDENAÇÃO DE COMISSÕES PERMANENTES ( CCP )

Encaminhada à publicação. Parecer da Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência. Publicado no DCD de 13/12/18 PÁG 542 COL 01 Letra E. Inteiro teor

25/02/2019

PLENÁRIO ( PLEN )

Apresentação do Requerimento de Urgência (Art. 155 do RICD) n. 607/2019, pelo Líderes, que: “Requer urgência para o PL 1361/2015, que considera pessoa com deficiência aquela com perda auditiva unilateral.

“. Inteiro teor

26/03/2019

PLENÁRIO ( PLEN )

Apresentação do Requerimento de Urgência (Art. 155 do RICD) n. 960/2019, pelo Deputado Delegado Marcelo Freitas (PSL-MG), que: “Requer urgência para o PL 1361/2015, ‘que considera pessoa com deficiência aquela com perda auditiva unilateral’”. Inteiro teor

29/03/2019

Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania ( CCJC )

Designado Relator, Dep. Diego Garcia (PODE-PR)

10/05/2019

Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania ( CCJC )

Apresentação do Parecer às Emendas ou ao Substitutivo do Senado n. 1, pelo Deputado Diego Garcia (PODE-PR). Inteiro teor

Parecer às Emendas ou ao Substitutivo do Senado, Dep. Diego Garcia (PODE-PR), pela constitucionalidade, juridicidade, técnica legislativa e, no mérito, pela aprovação das Emendas nºs 1 e 2 do Senado Federal. Inteiro teor

In: https://www.câmara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1228727. Acesso em 22 nov 2019.

Equivale dizer, desde o ano de 2015, data inaugural do PLC, por sinal no mesmo ano da edição do famigerado enunciado sumular 552 do Superior Tribunal de Justiça, a sociedade e especialistas no assunto vêm discutindo a questão da surdez unilateral total e o limbo jurídico em que vivem as pessoas com essa deficiência, que ora são definidas como deficientes para determinadas atividades, ora não consideradas normais para concorrer em vagas reservadas nos concursos públicos.

Após um longo e muito bem debatido trâmite legislativo, finalmente as Comissões competentes aprovaram a redação e o citado PLC está em viés de ser finalmente promulgado, reconhecendo um direito que certamente representa a materialização do princípio da dignidade da pessoa humana, e da plena e efetiva cidadania e da igualdade.

Considerando-se os fundamentos acima expostos, fica claro como água de rocha que o Decreto n. 3.298/1999 (com a alteração dada pelo Decreto n. 5.296/2004) e o enunciado da Súmula n. 552 do Superior Tribunal de Justiça tornaram-se obsoletos, injustos, incompatíveis com o moderna legislação vigente e a ciência, e, portanto, tornaram-se inconstitucionais, pelo que devem ser assim declarados, para fins de reconhecer a surdez unilateral total como deficiência e, assim, garantir o direito à vaga reservada a PCD em concursos públicos.

O ordenamento jurídico deve representar o grau de civilidade de uma sociedade, e quando esta reconhece as desigualdades e impedimentos de determinado grupo, deve utilizar das instituições e dos procedimentos legislativos para alterar o status quo, a fim de materializar os princípios fundamentais previstos na lei maior vigente.

Marcos Tonon de Souza (OAB/SC 34.630)

Advogado no escritório Balsini Corrêa Rosa Advogados Associados em Tubarão.

Graduado em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina (2012). Pós-graduando em Direito Previdenciário no Complexo Educacional Damásio de Jesus.

E-mail: marcostonon@bcr.criando.site